Self portrait 1945 Painting by Janos Pirk |
John Rawls |
“Certa
vez, Hegel escreveu que a Filosofia – tal como a coruja, que só alça o
vôo depois do entardecer –, somente elabora uma teoria após as coisas
terem ocorrido. Foi bem esse o caso da contribuição de John Rawls,
surgida em livro em 1971, A Theory of Justice, Uma Teoria da
Justiça, resultante direto do sucesso da campanha pelos Direitos Civis.
Herdeiro da melhor tradição liberal, que principia com Locke, passando
por Rousseau, Kant e Stuart Mills, Rawls debruçou-se sobre um dos mais
espinhosos dilemas da sociedade democrática: como conciliar direitos
iguais numa sociedade desigual, como harmonizar as ambições materiais
dos mais talentosos e destros com os anseios dos menos favorecidos em
melhorar sua vida e sua posição na sociedade? Tratou-se de um alentado
esforço intelectual para conciliar a meritocracia com a idéia da
igualdade.
A
resposta que Rawls encontrou para resolver essas antinomias e posições
conflitantes fez história. Nem a social-democracia europeia, velha de
mais de século e meio, adotando sempre um política social pragmática,
havia encontrado uma solução teórica-jurídica para tal desafio.
Habermas, o maior filosofo alemão do pós-guerra, considerou o livro de
Rawls um marco na história do pensamento, um turning point na teoria social moderna, abrindo caminho para a aceitação dos direitos das minorias e para a política da Affirmative Action,
a ação positiva. Política de compensação social adotada em muitos
estados dos Estados Unidos desde então, que visa ampliar e facilitar as
possibilidades de ascensão aos empregos públicos e aos assentos
universitários por parte daquelas minorias étnicas que deles tinham sido
até então rejeitadas ou excluídas. Cumpre-se dessa forma a sua meta de maximize the welfare of society's worse-off member,
de fazer com que a sociedade do Bem-Estar fosse maximizada em função
dos que estão na pior situação, garantindo que a extensão dos direitos
de cada um fosse o mais amplamente estendido, desde que compatível com a
liberdade do outro. Se foi o projeto da Grande Sociedade de (Lyndon
Johnson) quem impulsionou a teoria de Rawls, suas proposições,
difundindo-se universalmente, terminaram por lançar as bases dos
fundamentos ético-jurídicos do moderno Estado de Bem-Estar Social, 20 ou
30 anos depois ele ter sido implementado.
O movimento pelos direitos civis nos anos 1950... |
O Guitarrista - Pablo Picasso |
A sociedade justa
De
certo modo Rawls retoma, no quadro do liberalismo social de hoje, a
discussão ocorrida nos tempos da Grécia Antiga, no século 5 a.C.,
registrada na República, de Platão. Ocasião em que, por primeiro,
debateu-se quais seriam os fundamentos de uma sociedade justa. Para o
filósofo americano os seus dois pressupostos são: 1) igualdade de
oportunidade aberta a todos em condições de plena equidade e: 2) os
benefícios nela auferidos devem ser repassados preferencialmente aos
membros menos privilegiados da sociedade, os worst off,
satisfazendo as expectativas deles, porque justiça social é, antes de
tudo, amparar os desvalidos. Para conseguir-se isso é preciso, todavia,
que uma dupla operação ocorra. Os better off, os talentosos, os
melhor dotados (por nascimento, herança ou dom), devem aceitar com
benevolência ver diminuir sua participação material (em bens, salários,
lucros e status social), minimizadas em favor do outros, dos
desassistidos. Esses, por sua vez, podem assim ampliar seus horizontes e
suas esperanças em dias melhores, maximizando suas expectativas.
...e nos anos 1960, quando se impuseram à sociedade
|
A Grande Sociedade não era suficientemente grande para abrigá-los |
Para
que isso seja realizável numa moderna democracia de modelo
representativo é pertinente concordar inclusive que os representantes
dos menos favorecidos (partidos populares, lideranças sindicais,
minorias étnicas, certos grupos religiosos, e demais excluídos), sejam
contemplados no jogo político com a ampliação da sua deputação, mesmo
que em detrimento momentâneo da representação da maioria. Rawls aqui
introduz o principio ético do altruísmo a ser exigido ou cobrado dos
mais talentosos e aquinhoados – a abdicação consciente de certos
privilégios e vantagens materiais legítimas em favor dos socialmente
menos favorecidos.
A Direita ontem: a fascistizante Klu Klux Klan...
|
...e a Direita hoje: a delirante Sarah Palin e seu Tea Party |
Por
mais que a sociedade liberal tenha proclamado ao longo dos tempos seu
em empenho em favor da igualdade de oportunidades para todos, e na
difusão universal dos direitos de cidadania, sabe-se que, na prática
isso não ocorre. Um simples vislumbre da paisagem social existente na
maioria dos países democráticos confirma que as afirmações
pró-igualdade, alardeadas por todos, prendem-se mais à retórica do que à
realidade. Evidentemente que pode-se superar isso, e a
história assim o demonstrou, pela aplicação revolucionária de uma
igualdade imposta pela violência ou pelo terror político, na qual todos
terão acesso as mesmas coisas. Isso, porém, além de ter-se verificado
inviável ou impraticável numa sociedade democrática, comete uma outra
injustiça, visto que desconsidera as vantagens legitimas obtidas pelos
talentosos e os bem sucedidos em geral.
Equidade e altruísmo
Immanuel Kant |
A
correção das injustiças sociais, por conseguinte, somente poderia advir
da prática de uma politica visando a equidade, claramente localizada e
pontual. Não de uma revolução social. Verificando-se qual o setor social
menos favorecido (em razão da raça, sexo, cultura ou religião),
mecanismos legislativos compensatórios entrariam em ação para buscar
reparar, pela lei e com o consentimento geral, as injustiças cometidas. É
certo que isso requer a suspensão temporária dos direitos de todos os
demais, especialmente dos bem sucedidos, mas, como acreditava Kant, a Billigkeit,
a equidade deve ser, antes de tudo, reivindicada no tribunal da
consciência e não nos tribunais comuns. A sociedade num todo avançaria
então gradativamente identificando aqui e a ali as correções sociais a
serem feitas, agindo cirurgicamente no sentido de superá-las pela lei ,
aplicada simultaneamente ao apelo constante ao altruísmo dos better off,
não no sentido de uma inatingível igualdade absoluta, como era o desejo
dos radicais socialistas, mas na direção da mais justa possível a ser
alcançada dentro das normas de uma democracia liberal moderna..
Invertendo Platão
A sociedade justa para Platão era
aquela que alocava cada um dos seus integrantes segundo suas aptidões
verificadas (inteligência, coragem ou apetite), cabendo o seu governo
aos mais qualificados: os filósofos. Por conseguinte, sua visão
favorecia um regime dominado, digamos, dos mais técnicos, dos mais
talentosos e inteligentes (comumente se aceita que Platão teria sido o
pai da tecnocracia moderna). Rawls inverte tal propósito. Como vimos,
uma sociedade realmente justa, para ele, sem que se descurasse da
importância dos talentosos, é aquela que funciona em favor dos
destituídos.
Platão, o filósofo da aristocracia |
Conclusão
essa que se choca frontalmente com a muito difundida concepção
darwinista dos norte-americanos, que divide a sociedade entre vencedores
(winners) e perdedores (losers). Como poderiam eles
aceitar - numa cultura que celebra o vencedor mais do que qualquer outra
que se conheça - uma doutrina voltada preferencialmente a favor dos
desvalidos, dos que não tiveram condições de seguir na competição, ou
foram alijados dela, mesmo que o objetivo seja nobre visando corrigir um
erro do passado? Seja como for,a Teoria da Justiça serve hoje como
inspiração para a maior parte dos reformadores sociais em atividade.”
Originalmente no Cláudio Camargo
Originalmente no Cláudio Camargo
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